Prince: um ladrão no templo.
Entenda o fenômeno.
Mercurial, engenhoso, imprevisível, brilhante… andrógino? Quem foi e que legado deixou Prince Roger Nelson (7/6/1958 – 21/4/2016), cujo som equilibrava pitadas de jazz, funk, R&B, pop chiclete, psicodelia e hard rock, tudo isso e mais um pouco — ao mesmo tempo agora.
Para a mídia, lacônico, sardônico e inteligentíssimo, Prince era conhecido por deixar muitas pistas e despistes, jogar fichas, forjar rastros, lançar blefes. Tudo isto ajudou a criar o mito em torno do artista aclamado por Purple Rain (1984). No entanto, para quem parou no filme-com-trilha semiautobiográfico, lamentamos, há muito ainda o que se descobrir sobre a arte sui generis deixada pelo músico multi-instrumentista.
De onde vem o plectro, qual é a musa e que arquétipos representou o gênio de Mineápolis? Mais do que isso, quem estaria habilitado a decifrar uma história repleta de boatos, desmentidos, vaivéns e minúcias que só Prince poderia sustentar?
Brian Morton, autor escocês nascido em Paisley e criado em New Orleans-on-Clyde, professor universitário, jornalista do The Times, BBC Radio Scotland e BBC Radio 3, especialista em jazz, tomou para si esse desafio. Com nova edição em língua portuguesa, agora é a vez do público brasileiro empreender a jornada proposta por Morton em Prince: um ladrão no templo.
Em catorze etapas, o leitor mais proficiente também será capaz de desvendar esse fenômeno. O autor oferece como balizas um apanhado de álbuns, bootlegs, shows e biografias congêneres e conduz uma análise cirúrgica de seus conteúdos, desde o primeiro trabalho, aos 17, até a sua mal compreendida redefinição e emancipação.
Por toda a narrativa, o autor mantém uma bússola apontada para a história de Mineápolis, terra natal, e a revolução radiofônica birracial que Prince encabeçara. Produtor, arranjador, compositor e intérprete de seu próprio material desde a estreia, nesta obra, podemos testemunhar passo a passo como as personas criativas de Prince foram urdidas e estruturaram o núcleo central e experiência estética do artista e/ou símbolo impronunciável.
Não raro, sua generosidade artística propunha um jogo gestáltico de figura e fundo, no qual os parceiros musicais e bandas de sua formação cênico-musical desempenhavam um papel relevante, assumindo as vezes de titereiro de trios femininos como Vanity 6 e Apollonia 6, noutras de mestre de bandas como The Revolution e New Power Generation, além de mentor e colaborador de outras, como The Time e The Family, com quem dividia os palcos, as telas do cinema e a criação musical.
Como temáticas, a espiritualidade, a conversão às Testemunhas de Jeová e a liberdade/libertinagem sexual muitas vezes aparecem imbricadas ou indissociáveis. A heterogeneidade de influências e as intenções muito bem disfarçadas arquitetaram um verdadeiro mito do pop contemporâneo, que, por imperscrutável ou irreproduzível, não tem precedentes nem deixou herdeiros.
Como um artista pop ousou contestar entraves étnicos e sexuais, distender as barreiras do mainstream, misturar influências negras e brancas sem transformá-las num cinza afônico, insípido, além de incorporar o masculino e o feminino em sua própria persona artística? Como se atreveu a tomar as rédeas de seu próprio destino, enfrentando o establishment dos selos fonográficos? Afinal, como categorizar a música de Prince em sua autenticidade, que ultrapassou gerações e ajudou a debelar um verdadeiro apartheid radiofônico, como uma genial colagem dos frutos da pilhagem?