O Jesus Republicano, a hermenêutica do ódio e a reescrita
dos Evangelhos, até onde a política afeta a fé de um número crescente de cristãos
Em 1990, havia 17.033 templos evangélicos registrados no Brasil. Em 2019, segundo pesquisa do Centro de Estudos da Metrópole (USP), já eram 109.560. Ao todo, de acordo com o censo de 2010, conduzido pelo IBGE, os cristãos representavam 86,8% dos brasileiros, entre católicos (64,6%) e evangélicos (22,2%). Tal superioridade numérica se reverte em prestígio político, é o que dá conta reportagem da Revista Exame: “O avanço dos evangélicos na população brasileira se reflete no cenário político. Para as eleições de 2020, houve um aumento de 34% no registro de candidatos que utilizam a designação de pastores e pastoras no nome que aparecerá nas urnas (...) São 4.915 inscrições que fazem referência exclusivamente ao cristianismo evangélico, quase metade das 11.059 candidaturas explicitamente ligadas à religião. No pleito municipal de 2020, os candidatos religiosos cresceram 26% em comparação a 2016, que somavam 8.783.”
A forma de vivenciarmos o cristianismo no Brasil condiz com os fundamentos bíblicos? Foi uma inquietação como esta a que motivou Tony Keddie, historiador profissional e professor universitário especializado na política e economia nos tempos de Jesus, a produzir Jesus Republicano: como a direita reescreveu os Evangelhos, lançado em 2020 pela University of California Press, e com a versão em português lançada em julho de 2023 pela Editora 14. Na obra, o autor promove uma análise histórico-crítica lúcida e fundamentada, atenta ao contexto original do Mundo do Novo Testamento, para investigar se as ideologias por trás do movimento cristão dominante fazem jus à Palavra de Deus e, em rigor, à perspectiva do mundo quando os quatro Evangelhos do cânone bíblico foram escritos. O Jesus Republicano, um carpinteiro branco, pró-vida, fã de armas e que odeia impostos e homossexuais, é o homem mais poderoso da América.
Keddie analisa a ascensão política do evangelismo americano, que se ampara numa leitura particular do Livro Sagrado e na arquitetura do Jesus Republicano, um produto do conservador espírito do Partido Republicano ao longo do século XX e no decorrer do nosso século. Mais do que uma ferramenta argumentativa, trata-se do porta-voz de um cristianismo hegemônico na América, com um repertório/pauta política hermeticamente fechado, capaz de vencer a então última corrida presidencial (Trump – 2017/2021), e se ramificar por inúmeras conquistas políticas da extrema-direita na América Latina e Europa, em especial no último quinquênio da década passada.
“Concebi este livro como uma tentativa de responder mais a fundo aos questionamentos dos meus alunos — explicar de que modo as interpretações republicanas, metodologicamente falhas e ideologicamente enviesadas, transformaram o líder judeu de um movimento apocalíptico à soleira do Império Romano no porta-voz de fenômenos modernos, como o capitalismo de livre mercado, a personalidade do feto, o direito ao porte de armas de fogo e a separação entre a Igreja e o Estado.” (KEDDIE, p. 15, 2023, Editora 14)
Tecendo o percurso histórico formativo de uma interpretação tida como falha das Escrituras, em que os Evangelhos pseudepígrafos de Mateus, Marcos, Lucas e João são submetidos às predisposições, pendores e valores de leitores modernos em uma posição privilegiada, e logo incongruentes com o contexto de partida, do Mundo do Novo Testamento, Keddie pretende lançar luz sobre o texto bíblico, a vida de Jesus e as histórias narradas na Bíblia, devolvendo-as ao contexto social, político-econômico e literário gerativo. Assim, busca denunciar um Jesus que é falsificado, extemporâneo e politicamente enviesado: “Os influenciadores cristãos republicanos interpretam os atos bíblicos e as palavras de Jesus através da lente da plataforma do Estado Mínimo e, em seguida, passam a defender que é a Bíblia que fundamenta a plataforma do Estado Mínimo. E por recorrerem a esse ciclo causal equivocado, lograram descobrir um Jesus “bíblico” cujas opiniões políticas lhes correspondem, à imagem e semelhança.” (KEDDIE, p. 13, 2023, Editora 14)
Ambientado na vertente histórico-crítica, Keddie demonstra como uma hermenêutica do ódio torna Jesus o mensageiro de uma ojeriza que somente cabe a uma comunidade de intérpretes modernos, mas não faz sentido frente às tradições, visões de mundo e propostas que inspiraram os autores dos Evangelhos.
“Quando distanciamos radicalmente os escritos antigos de seus contextos históricos, é muito fácil interpretá-los de maneiras irresponsáveis — que não apenas calam as vozes e experiências dos personagens em suas épocas, mas também permitem apropriações que vilanizam determinados setores contemporâneos. Os judeus, muçulmanos, povos nativos americanos, afro-americanos, mulheres, a comunidade LGBTQ+, os imigrantes e os pobres são as vítimas mais frequentes das interpretações bíblicas metodologicamente falhas que são apresentadas como fatos históricos.” (KEDDIE, p. 31, 2023, Editora 14)
